domingo, dezembro 04, 2005

RENDA ou SEDA (do lado errado da porta)


Para lá dessa vil fronteira que nos separa ouço os teus pés que me fogem andarilhos, como um vento que me fustiga a alma; sinto a lenta agonia de quem perde o melhor do dia (todos os dias), a oferenda de um corpo orgulhoso em todo o seu esplendor, liberto de quaisquer trapos, vestido de promessas, néctar dos deuses, colírio que nos faz crentes. No inquietante roçagar do tecido sobre a carne esvai-se-me o coração em lágrimas de sangue e eu pressinto o suplício de uma quimera vã, em que aos meus olhos surges já vestida, no despertar de uma estéril espera. Não, imploro, não te vistas!, ainda não! Não te cubras num despudor despropositado, não omitas a estes olhos por norma tristes e cansados a alegria da harmoniosa simetria das tuas formas, dos teus seios, de ouvir dizer e adivinhar, perfeitos, do fruto maduro e pronto a colher ousando sob o ventre desnudado, o gracioso embaraço de uma sardenta Vénus reínventada. Do lado de cá dessa linha que por instantes nos afasta em silêncio me declaro e expío, sofro calado por cada um dos meus pecados e suspiros mais ousados. Não, imploro, não te vistas! Não ainda! Não por mim!, se acaso algo conto, se acaso mereço, para ti o privilégio da cedência dos teus encantos. Não te vistas!, não me magoes uma vez mais com o desprezo em que a tua natureza é fértil, qué um tormento cada minuto desse tempo em que um pedaço do teu corpo do meu se esconde, atrás de portas e botões, generosos decotes de promessas que ficam por cumprir adiadas. Chega de fugir, de ter medo de ousar, satisfazer! Rasga os disfarces que te prendem à raíz do medo, faz-te à vida p'la vida, faz-te presente, despe a vergonha, o orgulho e o preconceito, fica livre, fica nua, sempre e só em pelo, na símbiose mais que perfeita de dois corpos que se precisam e se querem... conhecer. Não, não te vistas! Nunca te vistas senão de amor, qué um sacríficio inglório, tamanho tormento imaginar-te às pressas, peça a peça, dos pés quase à cabeça, e em segredo imaginar-me renda... imaginar-me seda.


31AGO03

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